Como o diagnóstico tardio de autismo impacta as diferentes fases da vida

O transtorno do espectro autista (TEA) está presente na vida de muitas pessoas. Para tratá-lo, é fundamental que seja identificado ainda na infância. No entanto, a falta de informações acaba atrasando o diagnóstico e trazendo prejuízos na fase adulta

Daniel Zukko, ele é músico, desenhista e  chargista. -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Encontrar o seu lugar no mundo pode ser um desafio de anos. Em muitos casos, essa busca intensa é reflexo da necessidade de se encaixar e pertencer. Para quem é diagnosticado de forma tardia dentro do transtorno do espectro autista (TEA), essa procura tem ainda mais impacto e significado. E quando, enfim, o diagnóstico vem, vários são os sentimentos. Alívio e autoconhecimento são alguns deles, isso porque um passado inteiro de incompreensões passa a fazer sentido.

Estima-se que, hoje, há um caso de autismo a cada 44 pessoas nos Estados Unidos, conforme dados publicados pelo CDC (Center for Disease Control and Prevention), em 2022. Em nível nacional, não se sabe ao certo qual o número correto de brasileiros com autismo. No entanto, com base na estatística apresentada pelo órgão ligado ao governo norte-americano, o cálculo aponta um contingente de 4 milhões de indivíduos que vivem com TEA no Brasil.

Considerado uma alteração do neurodesenvolvimento, o transtorno do espectro autista é uma condição inata, que se manifesta desde a primeira infância. Carlos Uribe, neurologista do Hospital Brasília, da rede Dasa no DF, explica que os sintomas característicos incluem alteração no desenvolvimento normal da linguagem, dificuldade para as interações sociais e presença de comportamentos estereotipados. “Dentro do espectro tem casos com sintomas muito graves e outros com sintomas muito sutis, que inclusive podem passar despercebidos durante vários anos”, ressalta.

As características centrais do autismo têm a ver com limitações ou deficiências nas habilidades sociais (cognição social), linguagem e comportamento. Segundo o neurologista, o assento dessas habilidades cognitivas está localizado em redes amplas de neurônios que têm seus epicentros no lobo frontal. Casos com sintomas muito sutis podem passar despercebidos durante a infância e a adolescência. Por isso, talvez, o diagnóstico tardio esteja presente na vida de vários indivíduos. São pessoas que, muitas vezes, eram chamadas de forma coloquial de “esquisitas” ou “diferentes”, na avaliação de Uribe.

“Por se tratar de uma condição inata, há um componente genético/hereditário muito forte. É muito comum que, nesses casos de diagnóstico tardio, tudo tenha sido iniciado pelo diagnóstico de um filho, que faz perceber que alguns comportamentos e algumas experiências passadas dos pais poderiam estar explicados por um diagnóstico de TEA nos progenitores”, completa o neurologista.

Autismo e depressão

“Desde a infância, eu me diferenciava das demais crianças.” Larissa Argenta Ferreira de Melo, 40 anos, apresentava perfil introvertido, não gostava de toques ou abraços, tampouco de conversar ou fazer amigos. Estudava em um tradicional colégio particular, mas ninguém, jamais, suspeitou que o autismo fizesse parte da vida dela. Aluna destaque, com notas altas e bom desempenho, a desconfiança sempre passou despercebida. Naquela ocasião, só sabiam das altas habilidades/superdotação, mas não havia nenhuma adaptação curricular para isso.

Larissa Argenta

Com a chegada da adolescência, os problemas começaram a aparecer. Larissa tinha mau comportamento, tornou-se agressiva, arredia e faltava aulas. “Tinha uma sensação de tristeza, de inadequação, que, aos poucos, foi se transformando em desencanto pela vida, em vontade de não mais viver. Por esse motivo, a partir dos 17 anos, comecei a saga de internações psiquiátricas intermitentes, que perduraram até os 34 anos. O diagnóstico, à época, era transtorno afetivo bipolar (TAB), e experimentei todas as medicações existentes, mas nenhuma fazia efeito”, relembra.

Aos 34 anos foi reavaliada por um psiquiatra que descartou o diagnóstico anterior, mas não conseguiu saber o que de fato ela tinha. Felizmente, à época, parou de tomar medicações erradas, o que melhorou bastante sua qualidade de vida. “Aos 38 anos, estava em um relacionamento com uma pessoa que tinha sido casada com uma autista. Ele disse que precisávamos fazer terapia para resolver questões da relação, mas, na verdade, era uma avaliação neuropsicológica, que resultou no meu diagnóstico de autismo. Esse foi um dos momentos mais difíceis para mim.”

No começo, refutou completamente a avaliação. Larissa não aceitava o diagnóstico, pois afirmava ter “uma percepção capacitista” do autismo. Uma depressão profunda surgiu, o que gerou uma grave crise sensorial, somatizada em adoecimento físico. Depois de tantas dificuldades, como consequência, foi internada em setembro de 2022, em isolamento, com suspeita de tuberculose. Foram quase 10 dias sem conseguir respirar, tendo alterações nos batimentos cardíacos e perdendo eletrólitos.

“Como eu estava em risco de vida, aproveitei o momento de introspecção e reflexão para estudar sobre o que era autismo, como ele se manifestava em mulheres. A partir desse momento, tudo começou a fazer sentido, e o diagnóstico que antes me gerava dor passou a ser um instrumento de libertação. Tudo começou a fazer sentido, todas as dores, as dificuldades, as rejeições”, acrescenta.

Luz na escuridão

Ainda neste período, decidiu que, caso não morresse naquele momento, dedicaria o resto da vida à causa autista, imaginando a quantidade de pessoas que viveram e morreram sem ter acesso ao diagnóstico. Larissa pensou, ainda, naqueles que sofriam na terapia, mentalmente e fisicamente, e em muitos que não têm condição financeira para buscar tratamento adequado. Essa crença, talvez, tenha a segurado nos dias ruins. E mais do que isso, passou a encarar a própria jornada com uma definição nunca experimentada antes: a de lutar por um motivo.

Por sorte, ela começou a melhorar e descobriu que estava com uma pneumonia atípica agressiva, mas tratável. Ao sair do hospital, colocou em execução o que havia planejado durante o período de internação. “Sabia que, ao assumir o diagnóstico, enfrentaria muitos preconceitos e dificuldades, mas não poderia me calar ou me omitir. O primeiro passo foi assumir o autismo no emprego”, detalha.

Larissa Argenta

Servidora pública concursada desde 2005, ocupava função de chefia na ocasião. Ao apresentar o diagnóstico, foi imediatamente descomissionada, e luta até hoje na Justiça para reverter a situação. “Inaugurei um escritório de advocacia especializado na causa autista. Comecei a me articular com os movimentos ativistas, também das demais deficiências e síndromes. Tive a oportunidade de participar da criação da Comissão dos Direitos do Autista da OAB Subseção Taguatinga, a qual presido. Em outubro deste ano, tive a alegria de falar sobre autismo e diversidade na Conferência Nacional da Mulher Advogada da OAB Nacional, em Curitiba”, conta Larissa.

Foi convidada pelo deputado Eduardo Pedrosa para integrar a Frente Parlamentar do Autismo; da Prevenção ao Suicídio, Depressão e Qualidade de Vida. Recebeu moção de Louvor do deputado Fábio Felix pela atuação na educação inclusiva. Começou a atuar junto ao Legislativo na luta pela inclusão. “Eu me uni ao Sindicato dos Bancários de Brasília no combate ao assédio moral aos autistas e seus familiares. Proponho projetos ao Executivo para a criação de políticas públicas. E me engajei em diversas redes e movimentos, ocupando cargos voluntários de natureza jurídica.”

Propósito

Nada nesta nova fase parecia parar Larissa. Até que, no ano passado, foi diagnosticada com uma doença rara: SED (Síndrome Ehler-Danlos), que lhe causa bastante fadiga e limita sua capacidade de produção. No entanto, isso não a impediu de continuar atuando pela causa. Atualmente, consegue ficar pouco tempo em exposição social, o que a impede de marcar presença física em eventos. Mas, sempre que pode, afirma aceitar os desafios que se apresentam.

A cada dia que passa, Larissa enxerga que o diagnóstico tardio prejudicou seu desenvolvimento enquanto ser humano. Dores poderiam ser evitadas no passado, sofrimento em decorrência do desconhecimento e da desinformação sobre quem de fato ela era. “Olhando para trás, consigo ver todo o prejuízo social, profissional, educacional e relacional que essa situação me causou. Tenho profunda gratidão por ter tido acesso ao diagnóstico, de me entender, de me conhecer e buscar o meu equilíbrio”, comenta.

Larissa Argenta

Grande parte dos dias de Larissa são dedicados a terapias e acompanhamentos médicos. Conta com diversos profissionais que a acompanham e que lhe ajudam a se manter sem crises. Por conta da SED, faz fisioterapia duas vezes por semana em clínica especializada. Cuida da alimentação, não toma leite nem glúten e evita açúcar refinado. Não lê notícias negativas, que possam desestabilizá-la emocionalmente, e escapa do excesso de telas. “Vivo cheia de regras, mas que me possibilitam viver em paz. Isso é libertador, e vou dedicar todo o meu empenho e capacidade para que o máximo de pessoas possam ter o direito de viver da mesma forma: em paz dentro de si mesmo.” 

Um rosto desconhecido

Vários aspectos podem contribuir para o diagnóstico tardio de autismo, como a falta de informação sobre o assunto, que levaria a não identificação dos sinais ao longo da infância e da adolescência. Rafael Alberto Moore, professor no curso de psicologia do Centro Universitário Uniceplac, doutor em psicologia clínica e especialista em neuropsicologia, ressalta que algumas apresentações atípicas dos sintomas também podem dificultar a identificação do TEA.

Além disso, a falta de acesso a serviços e a profissionais de saúde durante a infância e a adolescência atrapalham a busca pelo diagnóstico correto, já que o retrato de informações e dados no que diz respeito ao tema são difíceis de encontrar. O processo de avaliação, na fase adulta, segundo Rafael, é similar aos primeiros anos de vida.

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fonte:

Correio Brasiliense

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