20 anos após reconhecimento, Quilombo Mesquita segue sem título coletivo
Comunidade foi certificada pela Fundação Palmares em 2006, mas segue sem a titulação territorial pelo Incra

Em 2006, Danusa Lisboa tinha 18 anos, morava no Quilombo Mesquita e estava para concluir o ensino médio. Naquele ano, a Fundação Cultural Palmares emitiu a certidão que reconheceu a comunidade como remanescente de quilombo. Hoje, 19 anos depois, Danusa completou 37 anos e é doutoranda em Agronomia na UnB – e o território onde nasceu continua sem o título coletivo que garantiria à comunidade o direito pleno à terra.
Localizado em Cidade Ocidental (GO), a 44 quilômetros do centro de Brasília, o Quilombo Mesquita tem cerca de 3,5 mil habitantes cuja ocupação remonta a 279 anos. A certidão da Palmares, importante primeiro passo, reconhece a condição comunitária e abre acesso a políticas públicas iniciais; porém ela não confere propriedade definitiva. Sem o título emitido pelo Incra, a posse permanece informal e a terra continua sujeita a disputas.
Em 8 de julho de 2025, a Justiça Federal da Primeira Região legitimou o direito da comunidade à regularização fundiária e determinou que o Incra concluísse o processo em 12 meses. Cinco meses após essa decisão, a titulação ainda não foi concluída, e o processo está travado na publicação da portaria de reconhecimento.
A demora mantém famílias em vulnerabilidade: sem titularidade, muitas não conseguem acessar crédito, programas de apoio ou garantias para investimentos, e a comunidade sofre pressão da especulação imobiliária e outras ameaças ao seu modo de vida: “A gente sabe que tem direito a programas de agricultura familiar, moradia, infraestrutura, mas não chega nada”, diz Danusa.
De acordo com o Censo Demográfico elaborado pelo IBGE em 2022, o primeiro ano a possibilitar a identificação do pertencimento étnico dos indivíduos, apenas 4,7% dos quilombolas no Brasil residem em territórios com título definitivo.
A longa jornada da regularização
A decisão de julho, resultado de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o Incra, exige que a autarquia publique a Portaria de Reconhecimento do Território Quilombola e, em seguida, inicie o processo de desintrusão (retirada das ocupações não quilombolas). A desintrusão é condição prática para avançar à titulação definitiva: só então a comunidade terá o título coletivo consolidado, que torna o território inalienável e o protege contra venda ou outras formas de perda de posse.
Questionados sobre a situação, a Assessoria de Comunicação Social do Incra informou que o processo de regularização fundiária encontra-se prestes a passar à fase de publicação da portaria. A previsão é a de que isso ocorra até o início de 2026. Em seguida, é necessário cumprir os demais passos até que se chegue à expedição do documento titulatório.
Também destacaram que a regularização de comunidades quilombolas é uma atividade complexa, por requerer muitas ações a fim de assegurar a legalidade e evitar a judicialização dos procedimentos. Por isso, não é possível definir o tempo médio entre a abertura de um processo e a emissão do título a uma comunidade remanescente.
Para Sandra Pereira Braga, atual presidente da Associação do Quilombo Mesquita, a expectativa com a titulação é que todos permaneçam ou retornem aos locais que eram dos seus ancestrais e familiares: “O ser quilombola é você reconhecer a sua origem ancestral, reconhecer que alguém veio antes e que alguém deixou para nós. Se você não tiver esse pertencimento interno de que você é algo porque alguém deixou para você, deixa de existir”.
Memória e ancestralidade
O Quilombo Mesquita nasceu, segundo os relatos preservados pela comunidade, a partir da doação de terras feita pelo português João Mesquita a três mulheres escravizadas no século XVIII. A partir delas, formaram-se as famílias que hoje compõem o território: Lisboa da Costa, Teixeira Magalhães, Pereira Braga e Pereira Dutra.
Sandra Pereira Braga, nascida e criada no Quilombo Mesquita, é também coordenadora executiva da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas). Ela cresceu na antiga casa do avô ouvindo as histórias sobre o passado e o valor de manter as raízes firmes na terra, e hoje, mantém o legado vivo do local como a sede da associação. “Meu avô sempre dizia: ‘isso aqui é uma casa, é uma comunidade preta, todo mundo é parente, todo mundo tem que lutar por isso aqui’, recorda.
Da convivência com os mais velhos, a líder compreendeu o sentido do quilombo como espaço coletivo e afetivo. “Nós já vivemos coletivamente desde sempre. É uma grande família organizada, que mora aqui de forma circular. Tudo continua”, explica.
Para Danusa, o protagonismo feminino é parte essencial da identidade local. “O nosso quilombo surgiu através da agricultura e foi erguido por mulheres. É muito simbólico que, até hoje, as mulheres continuem conduzindo a luta pela terra e pela permanência”, destaca.
A vida no território: liberdade e sustento
Entre os moradores da comunidade, muitos ainda vivem da agricultura familiar, tradição que atravessa gerações e garante o sustento das famílias.
José Roberto Pereira Braga, produtor rural que nasceu e cresceu no quilombo, diz que prefere a vida simples e autônoma no território à rotina da cidade: “Trabalhei três anos como porteiro no Ministério do Trabalho, em Brasília. Mas aqui é tranquilo, não tem comparação. Aqui eu mando em mim [..] lá, até uma banana que você quer comer tem que comprar. Aqui, você come a galinha que quiser, você mesmo cria.”
O quilombola Júlio Pereira Braga reconhece que a falta de apoio financeiro limita o desenvolvimento das famílias da região: “De que adianta ter a terra se a gente não tem capital pra investir?”, questiona. “Tem muita gente aqui que quer plantar, quer criar, mas falta incentivo. A gente tem vontade, mas não tem as condições.” Para ele, o reconhecimento jurídico do território só fará sentido se vier acompanhado de políticas públicas que garantam autonomia econômica e infraestrutura básica à comunidade.
Apesar de obterem documentos que comprovem o processo de titulação do Quilombo, como o RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação), publicado pelo Incra em 2011, Danusa explica que o acesso às políticas de agricultura familiar ainda é dificultado, por ainda não ser o título coletivo. “Quando você quer pegar uma linha de crédito não sendo quilombola, você só vai pegar a carteira de identidade e CPF e vai lá no banco, e eles vão olhar: você está com nome limpo, tem tudo. Mas aí, como quilombo eu preciso do documento de titulação para aprovar”.
Mesmo com o avanço da região, os quilombolas seguem com o cultivo da mandioca, tangerina e marmelo, fruta símbolo da comunidade. “O marmelo é o garoto-chefe do território”, explica Danusa, que pesquisa a cadeia produtiva e o cultivo da planta em seu doutorado. “Ele representa nossa força agrícola e a resistência cultural do Quilombo Mesquita.”
Apesar da longa trajetória de resistência, Danusa lamenta que a contribuição do Quilombo Mesquita ainda seja pouco reconhecida pelo poder público. Segundo ela, a comunidade ajudou a erguer Brasília e faz parte da história do Distrito Federal e de Goiás, mas permanece invisibilizada. “A gente fala que ajudou a construir Brasília, mas Brasília não nos reconheceu. Lutamos muito para conquistar nossos espaços e mostrar que o nosso território tem valor, que ele é importante e merece ser respeitado”, afirma.
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